segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

UM DIA


Um dia ele amanheceu sem dores e a mulher não reclamou de nada. Os filhos não pediram dinheiro nem brigaram antes de sair pra escola. Não recebeu nenhum telefonema de cobrança e, diga-se, o telefone nem estava cortado. Não viu o jogo ontem - nem sabe por que motivo - mas seu time não deve ter perdido, ou seu vizinho já o estaria sacaneando aos berros.

Naquele dia também não teve que sair de madrugada com recortes de empregos para ouvir nãos e voltar com tristeza e fome. Não o fizeram acreditar que era um fracassado e uma espécie de conselho de família e amigos, embora reunido, não concluiu que ele era imprestável e preguiçoso. Passaram apressados e olharam como se, pela primeira vez, se preocupassem com sua doença.

Depois de muitos anos não ficou triste ao acordar, não teve vontade de se matar, não rezou sem fé, nem se arrependeu do que fez. Não ia mais aturar desaforos. Quem pensam que são? Como diz Pessoa em linha reta, estão sempre campeões em tudo? São semideuses? Só ele é vil? Não era perfeito, mas quem ali podia se considerar melhor que ele? Queriam mantê-lo assim, precisavam de sua humilhação, os abutres. Que fossem procurar outra carniça. Bastava.

Ele não tossia, não engasgava nem fazia caretas pra respirar. Não precisou se arrastar até o ambulatório e esperar sentado, no chão, nem engolir comprimidos. Aquela vizinha enfermeira de mão pesada não apareceu com seringas e agulhas cada vez maiores e, apesar das marcas de ontem nos braços, não houve tortura naquele dia.

Num dia assim tranquilo não havia motivos para atrasos e seu enterro saiu pontualmente às quinze horas.



Albir José Inácio da Silva

http://crondia.blogspot.com

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